domingo, 31 de outubro de 2010

Ateísmo Militante

Por Frei Betto
 
No decorrer da campanha presidencial, afirmei, em artigo sobre Dilma Rousseff, que ela nada tem de marxista ateia e que nossos torturadores, sim, praticavam o ateísmo militante ao profanar com violência os templos vivos de Deus: as vítimas levadas ao pau de arara, ao choque elétrico, ao afogamento e à morte.

O texto provocou reações indignadas de leitores, a começar por Gerardo Xavier Santiago e Daniel Sottomaior, dirigentes da Associação Nacional de Ateus e Agnósticos (Atea).

Desfruto da amizade de ateus e agnósticos e pessoas que professam as mais diversas crenças. Meus amigos ateus leram o texto e nenhum deles se sentiu desrespeitado ou comparado a torturadores.

O que entendo por ateísmo militante? É o que se arvora no direito de apregoar que Jesus é um embuste ou Maomé um farsante. Qualquer um tem o direito de descrer em Deus e manifestar essa forma negativa de fé. Não o de desrespeitar a crença de cristãos, muçulmanos, judeus, indígenas ou ateus.

A tolerância e a liberdade religiosas exigem que se respeitem a crença e a descrença de cada pessoa. Defendo, pois, o direito ao ateísmo e ao agnosticismo. Minha dificuldade reside em acatar qualquer espécie de fundamentalismo, seja religioso ou ateu.

Sou contrário à confessionalidade do Estado, seja ele católico, como o do Vaticano; judeu, como Israel; islâmico, como a Arábia Saudita; ou ateu, como a ex-União Soviética. O Estado deve ser laico, fundado em princípios constitucionais e não religiosos.

Não há prova científica da existência ou inexistência de Deus, lembrou o físico teórico Marcelo Gleiser no encontro em que preparamos o livro Conversa sobre ciência e fé (título provisório), que a editora Agir publicará nos próximos meses. Gleiser é agnóstico.

Assim como não tenho direito de considerar alguém ignorante por ser ateu, ninguém pode chutar a santa (lembram do caso na TV?) ou agredir a crença religiosa de outrem. Por isso, defendo o direito ao ateísmo e me recuso a aceitar o ateísmo militante.

Advogar o fim do ensino religioso nas escolas, a retirada dos crucifixos nos lugares públicos, o nome de Deus na Constituição e coisas do gênero nada têm de ateísmo militante. Isso é laicismo militante, que merece minha compreensão e respeito.

O Deus no qual creio é o de Cristo, conforme explicito no romance Um homem chamado Jesus (Rocco). É o Deus que quer ser amado e servido naqueles que foram criados à sua imagem e semelhança homens e mulheres.

Não concebo uma crença abstrata em Deus. Não presto culto a um conceito teológico. Nem me incomodo com os deuses negados por Marx, Saramago e a Atea. Também nego os deuses do capital, da opressão e da Inquisição. O princípio básico da fé cristã afirma que o Deus de Jesus é reconhecido no próximo. Quem ama o próximo ama a Deus ainda que não creia. E a recíproca não é verdadeira.

Ateísmo militante é, pois, profanar o templo vivo de Deus: o ser humano. É isso que praticam torturadores, opressores e inquisidores e pedófilos da Igreja Católica. Toda vez que um ser humano é seviciado e violentado em sua dignidade e direitos, o templo de Deus é profanado.

Prefiro um ateu que ama o próximo a um devoto que o oprime. Não creio no deus dos torturadores e dos protocolos oficiais, no deus dos anúncios comerciais e dos fundamentalistas obcecados; no deus dos senhores de escravos e dos cardeais que louvam os donos do capital. Nesse sentido, também sou ateu.

Creio no Deus desaprisionado do Vaticano e de todas as religiões existentes e por existir. Deus que precede todos os batismos, pré-existe aos sacramentos e desborda de todas as doutrinas religiosas. Livre dos teólogos, derrama-se graciosamente no coração de todos, crentes e ateus, bons e maus, dos que se julgam salvos e dos que se creem filhos da perdição, e dos que são indiferentes aos abismos misteriosos do pós-morte.

Creio no Deus que não tem religião, criador do Universo, doador da vida e da fé, presente em plenitude na natureza e nos seres humanos.

Creio no Deus da fé de Jesus, Deus que se aninha no ventre vazio da mendiga e se deita na rede para descansar dos desmandos do mundo. Deus da Arca de Noé, dos cavalos de fogo de Elias, da baleia de Jonas.

Deus que extrapola a nossa fé, discorda de nossos juízos e ri de nossas pretensões; enfada-se com nossos sermões moralistas e diverte-se quando o nosso destempero profere blasfêmias. Creio no Deus de Jesus. Seu nome é Amor; sua imagem, o próximo.
Frei Betto é escritor e autor, em parceria com Leonardo Boff, de Mística e Espiritualidade (Vozes), entre outros livros
[Artigo publicado originalmente no endereço eletrônico do Jornal Correio Braziliense, em 29 de outubro de 2010.]
 
Acho que este artigo do Correio Braziliense merece destaque, muito interessante a visão do Frei Beto acerca desse tema.

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